segunda-feira, 13 de julho de 2020

Amor impossível



Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=M6o1SEj02t0

2020

Saudade, saudade de você.
Nem sei o porquê. 
Não sei nem do quê. 
Não entendi muito bem, e parece-me que tu também.

Meu coração me traiu, ele foi contra tudo o que sempre quis. Fui traída por si.
Vai passar, vai passar, mas aqui dentro até quando você ficará?
Não faz sentido, não faz razão, essas coisas temidas do coração.
Usaremos o raciocínio para eliminar o tesão, assim evitamos a tensão.

Meus batimentos aceleraram, parece que estou viva afinal. 
Mas ao mesmo tempo, estar viva por ti parece-me com um ponto final.
Sigo meu rumo cegamente, sem saber para onde ir, parece que estou sempre a fugir.
Não faz sentido, não faz sentido, não faz sentido. 
Mas ainda assim, sigo somente te sentindo. 

Será ilusão esse nosso amor? Mas é claro, somente isto explica meu ardor.
Quis arrancar a carne da sua bochecha com os dentes, te engolir e assim me alimentar de você.
Você... Nós sabemos, nunca vai ser.

Você é impossível meu amor, dói aqui dentro o quanto és inalcançável.
E ainda assim, terrivelmente memorável. 
Ninguém sabe, ninguém saberá, que em meu coração você sempre terá lugar.





quinta-feira, 9 de julho de 2020

Daquele que vem

Heilung | LIFA - Full Show - YouTube

# Escritos aleatórios psicodélicos da madrugada. Preciso subir.
Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=K7ZqZVunCb4

2020

A xícara descansando no pires em cima da mesa de madeira parecia poesia. Subia de sua suave porcelana acinzentada uma tênue fumaça de quentura. A fumaça era responsável pela dispersão do aroma amadeirado do café, que claro, acabara de ser moído e coado.
Janelas apresentavam o cenário da floresta verde repleto de neblinas a se dissipar. Estava frio afinal. Silêncio lá fora, quente casa adentro.

Livros envelhecidos espalhados pela mesa deixava evidente como sua mente funcionava: Conexões, tudo era conexões, tudo se conectava. Autor 1 citava autor 2 ou fora influenciado pelo autor 3 e assim por diante. Que canção linda era perceber que as vezes estamos falando das mesmas coisas, mas de formas diferentes.
Falar em canção, seu disco, sim disco. Comprou um porque achou que era cult/porreiro/hipster demais ter um toca-discos em casa. Que preguiça e ânimo tinha de si mesmo. Chegava a revirar os olhos de tanto que havia se tornado um clichê. Mas gostava disso e pensava consigo mesmo: “E quem não é?”

Voltemos ao disco, pois bem. Esta onda de café, livros e cenas, demandava um fundo musical que se adequasse ao estilo taciturno de que havia feito questão de criar. Que bela história estava a contar para si mesmo.
Metal progressivo e indie era o que gostava mais de ouvir, mas queria algo mais cru, mais humano e tribal. “Ai que preguiça” de seus gostos peculiares e exóticos, tinha vergonha de exibi-los, portanto ficou aliviado em ver que estava sozinho nessa aventura. Não precisa contar com o olhar de menosprezo do outro. Não conhecia absolutamente ninguém que ouvia Heilung.

Parecia gozar com o achado de expressões artísticas desconhecidas, como se só ele soubesse daquele segredo, como quem descobriu uma joia, uma pepita de ouro em um riacho e guardou cuidadosamente só para si.
Ao colocar para tocar, como num transe mágico, fechou os olhos. Sentia prazer nas coisas simples, no primitivo.

E aí pensou que talvez estivesse em sarilhos. Quem o entenderia? Quem conseguiria perceber e entender o gosto do café, do vinho, do cheiro que embrulha o estômago e revira as entranhas? Quem teria o seu ritmo quase complicado/singular/estranho? Quem acompanharia seu ritmo insano de busca por prazeres peculiares dentro e fora de si?

Já havia jogado suas runas, seu oráculo precioso, um tempo atrás e já tinha visto o desenrolar da história que passou. Foi avisado. Ele já sabia o final de tudo, bem quando estava ali no começo. Saber antes não melhorou nada, mas auxiliou na manutenção da idealização.

Abriu e levantou os braços, dançou Heilung, dançou com os elementais presentes o que o corpo queria dançar, ritmou em falas a sua voz corporal ancestral, celebrou sua pele quente e pulsante e por isso despiu-se. Sentiu Deus no que era mais puro e selvagem.
Tocou-se, queria sentir calor. Sentou-se no chão já suado e pôs-se e beber o café. 
Desceu rasgando suas papilas e promoveu pequenos arrepios no pescoço. 

Os pelos de todo o corpo eriçaram. Sentiu, alguém estava chegando.
A porta ressoou com um som conhecido, só podia ser ela.
Abriu a porta e sim, era ela. Ela finalmente estava a chegar.



quinta-feira, 14 de julho de 2016

Do fim da vida





Eddie Vedder - Hard Sun
*Foto de Christopher Johnson McCandless - O filme Into the Wild foi inspirado em sua vida





A bomba veio e despedaçou cada pedaço de pele com violência inflamada. Era o fim. Explosões foram noticiadas em todas as cidades do mundo e toda a humanidade fora extinta.
Ninguém esperava por isso, estavam todos confortáveis em suas salas, em suas cozinhas preparando a próxima refeição com a tv ligada. Absolutamente nada no mundo deveria ser tão injusto assim. 
Alguns meses antes, uma curva provocou uma minúscula mudança em tamanha tragédia. Um garoto de uma cidade pequena foi aos meios de comunicação e informou que o fim chegaria a todos. Vidência? Sabedoria precoce? Loucura? Ninguém sabia. Ciente de que não seria facilmente ouvido, o menino (de uns 13 anos), escreveu um texto com o título: "É proibido ser infeliz, pois o fim vem". Ele imprimiu milhares de cópias desse texto e passou a espalhar os papéis pela cidade, que ficou salpicada de branco. O texto narrava sobre o fim inevitável e das formas de escape, que seriam inúteis, mas que ainda assim poderiam fazer do fim algo menos traumático. Uma vida com sentido, afinal. 
Poucos leram, pois diziam que era óbvio demais, que todos sabiam disto, que se tratava de marketing de auto ajuda, que estavam conscientes e que o silêncio deles era pura negação. 
Uma garota, que estava sentada em um café lendo seu livro, se assustou quando o papel do texto voou em sua direção (mais precisamente no seu rosto), e ficou um tanto atordoada por ter sido retirada de sua história tão bruscamente. Resolveu lê-lo. Ao terminar de ler teve um insight, levantou a cabeça e observou que todas as pessoas na rua traziam consigo algo perturbadoramente comum: Uns andavam rapidamente em direções desconhecidas, outros andavam mexendo nos celulares, uns poucos se alimentavam sentados olhando para o nada, outros passeavam com os cães... O similar era que todos, sem exceção, pareciam estar em um estranho transe. Percebeu que se quisesse chamar a atenção deles teria que gritar, alguns tomariam susto e outros nem a ouviriam. No que pensavam? Cada um estava imerso em seu universo mental/paralelo tão fixamente, que pareciam enfeitiçados, ela também estaria se não tivesse sido despertada. "Corremos, corremos e corremos para a mesma direção, fazendo tudo igual aos nossos pais, seguindo o mesmo modelo de felicidade de todos." - pensou.
A garota se viu como um deles, se identificou alienada. 
Foi pra casa e decidiu traçar uma rota de fuga acima das montanhas, muito longe de casa. Seguiu o que o texto dizia, seria feliz antes do fim, e pra ela o fim perfeito seria perto de sua montanha predileta. O fim vem, e por isso, eu vou. 
Enquanto isso, todos continuavam cozinhando, trabalhando em empregos que detestavam - ou não, sendo felizes com suas escolhas ou projetando-as para o futuro: "Quando eu comprar aquela casa serei feliz". 
"Todos fazem escolhas até quando se negam a isso, pois optam por não escolher. Não escolher é também uma escolha." Afirmou a si mesma, se referindo a como agiu durante toda a sua vida. 
Na contramão de seus pares, resolveu vender tudo e juntar uma quantia razoável para fugir sozinha para a tal montanha. Quando falou de seus planos para os outros só ouviu sobre como não daria certo, de que o fim demoraria, que se não desse certo na montanha ela teria que voltar, que precisaria de uma casa ao voltar, de que iria sofrer longe de seus conhecidos, que era perda de tempo, que era imatura. Resumindo, ouviu que o melhor a fazer era se aninhar no conhecido para ter uma velhice tranquila. 
Só que não entendiam que não há tranquilidade no fim e que esse fim virá criativamente para cada indivíduo na terra, para uns cedo demais, para outros muito tarde e na esmagadora maioria das vezes seria uma incógnita. A garota sabia que precisaria tentar, ao invés de permanecer esperando o momento em que descansaria em seu casarão/caixão.
Conseguiu após algum tempo partir para a montanha, seu universo predileto no mundo, e sentiu que ao fazer a escolha que se deseja, independente da opinião dos outros, é libertador.
E o fim veio para todos como anunciado: para os que estavam em suas casas, para os que estavam sentados no sofá, para os que trabalhavam, para aqueles que só usavam perfumes bons em festas especiais, para o menino que escreveu o texto, para aqueles que prometiam que era a última dose, para os que se achavam velhos, para os que se achavam feios, para os que não acreditavam em si mesmos e resolveram desistir de suas escolhas, para o rapaz apaixonado que não insistiu no romance por puro orgulho, para a mulher que só se envolvia por dinheiro, pro pai que abandonou o seu filho, para os internados nos hospitais, para os "bons", para os "maus"...
E também para a garota, que estava sentada na montanha de olhos fechados, no exato momento que a bomba explodiu. O fim alcançou a todos, os felizes e infelizes seres viventes desta terra, e nunca, nunca mais estes poderiam retornar ao ponto anterior disto, estava de fato tudo acabado. 
Alguns diriam que suas vidas foram vividas da melhor e mais completa forma possível, mas infelizmente nem todos podiam dizer o mesmo.

O mundo inteiro se esvai (em um segundo e bruscamente), quando nós, platéia única e individual do mundo inteiro, nos vamos. Você carrega e é, o seu/nosso mundo inteiro.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Harry



Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=Y4Ry_56bNGw
JORN - Living with Wolves


Ele fechou os olhos e ficou naquele vácuo do sono, cansaço o acompanhava por um tempo. Olhou para todos os lados e se viu cercado de vida, mas a vida real, não a que sempre desejou. Não se referia as dificuldades da vida, mas a vida em si. Tudo parecia uma grande piada, uma piada ruim, de mal gosto e insistentemente contada em uma mesa com restos do jantar. Mais um gole do vinho barato, mais uma taça, mais um dia e mais um final de dia. Tudo ao contrário, tudo opostamente milimetrado para a encenação da peça ruim que tinha se tornado sua vida. Ao fechar-se as cortinas das pálpebras, um velho dia se encerrava e um novo dia o violentava com o sol da manhã. Acreditava que a claridade era o impulso natural do dia que o forçava a fazer algo, mesmo que esse algo não significasse absolutamente nada. Olhou pra janela. E o que via era diferente das imagens que viu quando criança, agora era diferente, via prédios e -eis aí a grande piada- algo ali era bastante similar. O vazio da vista era preciso, cheio de coisas que não havia escolhido, alheias a ele. Se perguntou o porquê de estar ali. Naquela época, naquele dia, naquela estação, naquela cidade e com aquelas questões. Mais um dia se acabou. Abriam-se as cortinas, fechavam-se as cortinas e nada, nada o fazia acreditar que o espetáculo era de fato importante. Inútil- pensava consigo mesmo. Até quando colaboraria para que as coisas seguissem rumo ao precipício? Até quando largaria as mãos do volante e taparia os olhos? Até quando ficaria satisfeito com os aplausos dos espectadores?
Criou pra si histórias, histórias com personagens interessantes, personagens que não sabiam desistir porque o fim era certo e era bom. Mas na vida real é esta uma possibilidade? Claro que não. Seus sonhos sempre foram irreais porque sempre se sentiu fora do contexto, fora do usual, fora das rimas. Se fosse feito um poema o seria feito no tom de Augusto dos Anjos: cru, intenso, visceral, triste. Uma vida colocada no livro que não queria estar, e que se pudesse escolheria outro. Opa, é possível? É possível desenhar a própria vida como se desenha um boneco de palitos? Seria possível fazer escolhas, mesmo que absurdas, e poder tocá-las na realidade? Era de fato possível realizar sonhos? Não sabia ao certo. O que sabia era que se sentia preso, como se os pés estivessem enterrados em cimento fresco. Se ficasse ali iria endurecer e permanecer naquele local pra sempre. Duro, infeliz, estagnado, longe, mas muito longe de suas ideias e desejos futuros. Vale a pena viver a vida que não se quer viver?
Pegou papel, caneta e começou a escrever. Precisava organizar as ideias confusas de sua mente agitada e melancólica. Esse seria seu acordo íntimo, o que não dividiria, seu livro secreto, aquele que queria saltar para. A história irreal de sua nova vida.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Do Lobo





Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=SBjQ9tuuTJQ
Foo Fighters - The Pretender

2016

Dentro da floresta os sons das folhas que batiam em seus pelos ecoavam como canção. Ouvia seu coração palpitar e bombear sangue quente para todas as partes do corpo, principalmente para as patas, pois elas corriam selvagemente animadamente. 
Sentia cheiros diversos, cheiro da terra úmida e das folhas molhadas. Sentia principalmente o cheiro do medo, essa era a mais forte dentre todas as notas aromáticas presentes. O cheiro do medo era ácido e se misturava ao cheiro do indivíduo formando uma criação singular, um perfume original. Perfume que fazia seu estômago revirar. Ao sentir esse cheiro, a energia pulsante ganhava mais força. Sua visão ficava cada vez mais precisa, os dentes mais afiados e sentiu-se babar, rosnar. Sim, tinham provocado seu interesse. 
Já havia corrido por muito tempo e percebeu que tinha ido longe, longe demais por isto. Sua matilha estava a léguas de distância e havia entrado em terreno desconhecido, estranho. O aroma de lá era repleto do cheiro de outras vidas. Não havia nada conhecido ali. Marcou território nas árvores, arranhando algumas delas e urinando em seus pés. Sabia que era inútil, mas precisava se colocar no espaço no qual se encontrava. 
Pensou em voltar, mas estava cansado. Viu que estava vulnerável, sozinho, faminto e sedento naquele local. 
Correu para o monte mais próximo a fim de ver um pouco do terreno. O rastro do cheiro perseguido simplesmente desapareceu. Começou a duvidar de sua própria sanidade. O que procurou por tanto tempo? Já não importava mais. O que havia motivado a corrida sumiu como passe de mágica. Se tornou poeira, insignificante, uma memória como aquelas dos sonhos frágeis, que ao acordar escapam pelos dedos e deixam a confusão em seu lugar.
Mas o que o cheiro causou é que era perturbador: Até que ponto estava disposto a correr por causa de uma suposta presa? Era só mais uma, só mais uma presa ao alcance das patas, só mais um cheiro ácido da floresta, só mais um alimento dentre diversos outros. 
Se viu sozinho, mas não sentiu falta do sumiço repentino e de ter perdido a trilha, só se sentia estúpido, pois não soube identificar o que era presa do que era alimento. 
Havia confundido o mais primitivo dos impulsos. 
Foi com essa lição pra casa calmamente. Distraído, se pegou pensando no que iria jantar.

domingo, 8 de novembro de 2015

Do Malandro


Para ler ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=Nm5N4iFLU0g
Zeca Pagodinho - Quando a Gira Girou


Chovia e os paralelepípedos da ladeira escorregavam um pouco. O par de sapatos brancos e vermelhos subia animadamente, nada tiraria o vigor de uma caminhada pra alegria. Porque a felicidade era algo a ser perseguido, lutado e conquistado, ele sabia. Uma chuva não atrapalharia. O calor da fumaça do cigarro esquentava o corpo e a cachaça queimava a garganta, com isso, já tinha o fogo que precisava.  Não temia nada e nem ninguém, e eis o reflexo de seu sentimento humano: um tantinho de arrogância. Encontraria todos lá em cima e quem sabe encontraria também Teresa. Linda, sexy e perigosa. Todas as vezes que conversavam Teresa o tratava mal e em todas às vezes ele ria, até perceber que estava completamente apaixonado. Dessas paixões momentâneas que ele tanto prezava e que fazia a vida ficar interessante. A cachaça ajudava-o a dar o molejo seguro que precisava. Sóbrio ficava mau humorado e inseguro, a cachaça dava cores a uma cidade cinza, não de clima, mas de cores nos prédios, pistas, bares e etc. Tinha posto na cabeça que a teria, “Teria Teresa” nem que tivesse que ter Teresa só o maltratando. Depois dos insultos vinha o tal sorriso de canto de boca que só dava mais energia a investida. Era um jogo, um jogo agressivo e suave, não muito ríspido e nem frio, só pra dar graça. O jogo o excitava. Já tinha visto a aliança na mão esquerda dela, se perguntou se seria só um anel, mas isso não o impediria. Aliás, a aliança fazia também parte do jogo, da dança das saias e dos sapatos coloridos. Ao chegar, pediu pra que dançasse com ele, ela não quis (ficou evidente), mas aceitou por educação. Ele colocou a mão na cintura fina de Teresa e a apertou contra o corpo. Ela usava um vestido vermelho e ele imediatamente pensou que era sua cor predileta, depois do masculino azul e verde. Ele usava branco, achava mais adequado a ele, se sentia bonito e “caro”, tipo “gente fina”.  Dançou a madrugada toda, rodopiou, girou e viu o sol raiar. Teresa já não parecia tão segura quanto antes, ele sabia, nessa noite a conquistou de fato. Nessa hora ele percebeu que precisava ir, sair antes que ela o desejasse mais, saiu correndo sem olhar pra trás. O olhar de procura de Teresa iria dar com a falta, e assim, ela seria sua. A próxima dança, o próximo soar do sino, a próxima lua e o seu futuro encontro.

domingo, 27 de julho de 2014

Demian






Para ler ouvindo : https://www.youtube.com/watch?v=d81M1guejXQ
Vinicius de Moraes - Canto de Ossanha


2014


Ventava fora da cabana um vento gélido. La fora pinheiros balançavam violentamente, parecendo frágeis e os ventos de inverno os chicoteavam. Demian* estava convenientemente protegido em sua cabana, iluminada por pequeninos abajures. 
Que lugar seguro - Demian pensou. 
Se aproximou da janela e passou a mão no vidro, para tirar o vapor que o impedia de olhar o começo de uma nova tempestade. Sorriu. Adorava ouvir o barulho da chuva. A cabana era um lugar novo que ele adquirira para ficar sozinho e em paz, meditando nos seus livros e as vezes, trazendo amigos para beber um vinho, fumar cigarros e ouvir música.
Mas de repente, como um daqueles acontecimentos inevitáveis promovidos pelo sarcasmo do destino, algo inesperável aconteceu: Um sopro quente se aproximou. Um sopro que Demian já conhecia, porém, estava velho e estranho. Esse vento costumava ser frio, agora estava quente.  Era possuidor de um cheiro bom, mas agora, nada exalava. Simplesmente adentrou a sala sem ser convidado.
-Por onde você, Vento velho, entrou? Deixei alguma brecha aberta? Cadê seu cheiro que outrora me devorou?
Demian fechou os punhos e torceu os dedos, passando um nos outros, nervoso. Não estava tão seguro quanto pensava.
Veio imediatamente à memória o perfume desse Vento. Era adocicado e com leves toques cítricos. Um casamento/encontro de aromas não necessariamente perfeitos, porém únicos. E hoje, esse vento trouxera novidades, estava quente e sem cheiro. Como pode um sopro frio se tornar quente? Não ter mais cheiro?
- O que se deu para tamanha mudança?  Talvez... talvez esteja insípido! Não, perdão, insipidez é falta de gosto... Mas... Até que faz sentido... 
Silêncio.
Ventos não respondem.
Demian sabia disso, sempre soube. Havia uma barreira silenciosa entre ambos desde o começo. E as sucessões de acontecimentos trágicos rapidamente vieram à mente de Demian. Lembrou que do corpo quente saíram ondas de calor, ondas estas que se atrelaram ao ar do ambiente, tornando-se cada vez maior. No dia, Demian abriu os braços e sentiu. Sentiu no corpo o insano dessa vida. Pensou no absurdo que é não se poder ver o Vento e ao mesmo tempo poder senti-lo. Só que, ainda inebriado, se deu conta de que estava sozinho. Sozinho nessa experiência que poderia ser de algum modo transformadora.
Faz sentido viver algo e não poder dividi-lo?  Aliás, sentir, nesse caso específico, seria da ordem do individual ou do coletivo? Nesse dia fechou os braços e olhou para os lados, foi-se embora assim que pôde.
Confuso com o retorno desse Vento passado, Demian pensou que qualquer pessoa sã, em seu lugar, fecharia a janela... não é?
- Vento, você ainda é o mesmo?  Parece diferente...
Demian não sabia, mas esse Vento, caso mantivesse as mesmas propriedades de antes, ao passar por ele em um novo dia, já havia se tornado inevitavelmente outro. Pois se configurou o ato em um cenário singular, atual. Não havia possibilidade alguma de que esse Vento provocasse tanta comoção como provocara antes, pois já não era mais o mesmo, porque o momento não era mais o mesmo... e ainda que fosse, Demian havia mudado. Embora ainda usasse seu pijama antigo e permanecesse com suas velhas manias: café, exercícios noturnos e leituras, Demian estava em um novo momento. Havia andado por outros caminhos, visto e sentido novos Ventos, aprendera muitas coisas...
Vento e Demian, de frente um pro outro, já não eram mais Vento e Demian. Eram agora completos estranhos, frutos oriundos das infinitas formas e possibilidades que um homem nesta vida adquire ao longo do caminho da sua própria existência.
Uma tempestade acontecia lá fora. Sentiu medo de que ela entrasse junto com o Vento, que já estava lá, e desorganizasse tudo. Fecha-se a janela?
Demian tentou pensar rapidamente na resposta e chegou a conclusão de que coisas importantes não vão embora, permanecem. Pois o que é necessário fica, não dá meia volta. As experiências gratificantes tendem e estimulam repetições. 
Finalmente falou: - O necessário teria ficado. 
O Vento percebendo o olhar de Demian se retira. 
Os músculos se relaxaram imediatamente. O perigo passou. 
Demian sabia, esse Vento não entraria nunca mais na sua cabana, porque verdadeiramente nunca esteve lá. E mais tarde, através de uma epifania enquanto estava fazendo seu chá, entendeu que o cheiro do Vento nunca mudou, isso seria impossível. Ele, Demian, é que não podia mais senti-lo.
Sentou-se e pôs-se a escrever.


O nome Demian foi inspirado no livro de Herman Hesse*


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Psicóloga que de vez em quando é contadora de histórias. Vocalista de heavy metal aposentada. Casada com a leitura (casamento em crise no momento) e amante (imperfeita) da escrita.